Resenha de “O inconsciente” (1915) de Freud

César Assis
10 min readJul 9, 2021

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O texto O inconsciente pode ser visto como um ponto culminante da teoria de Freud, no qual ele apresenta argumentos fundamentais sobre a existência de processos mentais que estão além da consciência. A nota do editor inglês das obras completas afirma que para Freud “restringir os fatos mentais aos que são conscientes e entremeá-los de fatos puramente físicos e neurais, ‘rompe as continuidades psíquicas’ e introduz lacunas ininteligíveis na cadeia de fenômenos observados” ([1915] 2006 p. 166). Este artigo também evidencia a passagem do autor da fisiologia e dos métodos neurológicos para a metapsicologia, bem como nele a entidade metafísica do inconsciente enche-se de carne e sangue e ganha estatuto de substantivo, o que caracteriza sua primeira tópica.

Escrito em 1915, esse trabalho possui uma breve abertura e sete partes. Na parte inicial, Freud enuncia a tônica do artigo: “a essência do processo de repressão não está em pôr fim, em destruir a ideia que representa um instinto, mas em evitar que se torne consciente” (idem, p. 171). Além disso, o autor postula que somente podemos chegar a um conhecimento de algo inconsciente depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente.

A primeira parte do texto denomina-se Justificação do conceito de inconsciente, na qual o autor defende a existência do inconsciente, apesar da grande contestação que geralmente se faz a esta noção. Freud afirma ser necessária e legítima a suposição da existência de processos mentais inconscientes. Ela é necessária pois

“os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas; tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com frequência atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova” (idem, p. 172).

Entre esses atos psíquicos inconscientes pode-se citar os atos falhos, sonhos e sintomas. Os atos conscientes não ficariam ligados sem a colocação de outros inconscientes entre eles. Continuando o seu argumento, Freud afirma que

“a suposição de um inconsciente é, além disso, uma suposição perfeitamente legítima, visto que ao postulá-la não nos estamos afastando a um só passo de nosso modo habitual de pensar” (idem, p. 174).

O autor explica que do mesmo modo como a consciência atribuída ao outro é uma inferência, é possível identificar em nós mesmos processos mentais que carecem de consciência.

A segunda parte do texto intitula-se Vários significados de ‘o inconsciente’ — o ponto de vista topográfico. Os argumentos desta parte progressivamente delineiam as fronteiras do conceito fundamental do artigo. Como ponto de partida, o autor considera que há atos psíquicos variáveis, sendo que o “atributo de ser inconsciente é apenas um dos aspectos do elemento psíquico, de modo algum bastante para caracterizá-lo” (idem, p. 177).

Além disso, Freud afirma que

“o inconsciente abrange, por um lado, atos que são meramente latentes, temporariamente inconscientes, mas que em nenhum outro aspecto diferem dos atos conscientes, e, por outro lado, abrange processos tais como os reprimidos, que, caso se tornassem conscientes, estariam propensos a sobressair num contraste mais grosseiro com o restante dos processos conscientes” (idem, ibidem).

Freud faz uma diferenciação que se torna capital para a economia geral de seu argumento. Os termos “consciente” e “inconsciente” foram utilizados ao longo do texto de dois modos distintos: descritivo e sistemático. No primeiro caso, “consciente” e “inconsciente” são palavras utilizadas como adjetivos. No último caso, tais palavras significam sistemas particulares. Para diferenciar o uso sistemático o autor passa a utiliza Cs. para consciente e Ics. para o inconsciente, bem como Pcs. para pré-consciente.

Com a intenção de descrever o funcionamento de tais sistemas, o autor prossegue afirmando que o ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as quais ocorre uma espécie de teste (censura).

“Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi ‘reprimido’, devendo permanecer inconsciente. Se, porém, passar por este teste, entrará na segunda fase e, subsequentemente, pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs. Mas o fato de pertencer a esse sistema ainda não determina de modo inequívoco sua relação com a consciência. Ainda não é consciente, embora, certamente, seja capaz de se tornar consciente” (idem, p. 178).

Neste caso, apesar de ainda não consciente, o ato psíquico é compreendido como parte do sistema Pcs. Assim, nessa formulação (primeira tópica), Freud postula que o sistema pré-consciente (Pcs.) participa das características do sistema consciente (Cs.), e que a censura rigorosa exerce sua função no ponto de transição do Ics. para o Pcs. (ou Cs.). Com tal divisão a psicanálise se distanciou ainda mais da psicologia da consciência.

Diante de tal topografia dos atos psíquicos, Freud formula uma dúvida a qual será respondida mais adiante neste texto:

“Quando um ato psíquico (limitemo-nos aqui a um ato que seja da natureza de uma ideia) é transposto do sistema Ics. para o sistema Cs. (ou Pcs.), devemos supor que essa transição acarreta um registro novo — por assim dizer, um segundo registro — da ideia em questão, que assim, pode também ser situada numa nova localidade psíquica, paralelamente à qual o registro inconsciente original continua existir? Ou, antes, devemos acreditar que a transposição consiste numa mudança no estado da ideia, mudança que envolve o mesmo material e ocorre na mesma localidade?” (idem, p. 179).

Além disso, finalizando esta parte, Freud também explica as implicações de sua metapsicologia: “nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situados no corpo” (idem, ibidem).

A terceira parte do texto chama-se Emoções inconscientes. Nesta, Freud se volta para os instintos, emoções e sentimentos e pergunta se tais elementos seriam passíveis ou não de classificação como consciente e inconsciente tanto quanto as ideias.

Com relação ao instinto, a adjetivação consciente ou inconsciente não se aplica do mesmo modo, pois

“um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência — só a ideia que o representa pode. Além disso, mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma ideia. Se o instinto não se prendeu a uma ideia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ele” (idem, p. 182).

Ou seja, rigorosamente um instinto não seria inconsciente, mas sim a sua representação ideacional.

E com relação a sentimentos, emoções e afeto, é possível classificá-los como inconscientes? Afirma Freud que

“em primeiro lugar, pode ocorrer que um impulso afetivo ou emocional seja sentido mas mal interpretado. Devido à repressão de seu representante adequado, é forçado a ligar-se a outra ideia, sendo então considerado pela consciência como manifestação dessa ideia. Se restaurarmos a verdadeira conexão, chamaremos o impulso afetivo original de inconsciente. Contudo, seu afeto nunca foi inconsciente, o que aconteceu foi que sua ideia sofreu repressão” (idem, ibidem).

Além disso, o uso das expressões “afeto inconsciente” e “emoção inconsciente” refere-se às vicissitudes sofridas em virtude da repressão. Para Freud, três são os caminhos possíveis “ou afeto permanece, no todo ou em parte, como é; ou é transformado numa quota de afeto qualitativamente diferente, sobretudo em ansiedade, ou é reprimido, isto é, impedido de se desenvolver” (idem, p. 183). Sendo esta última a verdadeira finalidade da repressão.

Para autor há diferenças que precisam ser consideradas entre o afeto e a ideia. Após a repressão, a ideia inconsciente continua a existir como estruturas reais no sistema Ics., ao passo que o afeto inconsciente é um início potencial impedido de se desenvolver. Além disso, ideias são catexias, basicamente de traços de memória, enquanto afetos e emoções são descargas percebidas como sentimentos.

Por fim, nesta parte, o autor também afirma que o sistema Cs. controla a motilidade, a afetividade e realça a repressão. Ele cerceia o desenvolvimento de afetos. Contudo, o controle pelo sistema Cs. dos afetos é bem menos efetivo do que da motilidade.

A quarta parte do texto denomina-se Topografia e dinâmica da repressão, onde certamente se encontra o argumento central do artigo em questão, além de apresentar pontos fundamentais da teoria freudiana.

O processo de repressão afeta as ideias na fronteira entre os sistemas Ics. e Pcs. (Cs.). Freud quer compreender o que ocorre com ideia e como ela recebe (ou deixa de receber) catexia do sistema Ics. e Pcs. (Cs.). Além disso, ele visa explicar o processo que mantém a repressão (pressão posterior) e a repressão primeira, assegurando e estabelecendo a continuidade de uma ideia no sistema Ics.

Para explicar esse processo, o autor toma a histeria de ansiedade (fobia) como exemplo. Tal neurose seria caracterizada pelo fato de a ansiedade surgir sem que o sujeito soubesse a razão de tal sentimento. O autor explica o processo de repressão nesse caso em três etapas.

Primeiramente, os impulsos amorosos presentes no Ics. exigem ser transpostos para o sistema Pcs. Contudo, a catexia deste último sistema retrai-se do impulso e a catexia libidinal inconsciente da ideia rejeitada é descarregada sob a forma de ansiedade. Ou seja, ocorre a expressão desse afeto, apesar de a ideia a que inicialmente esteve ligada a ele ser rejeitada.

O segundo passo seria a formação de substitutos. A catexia do sistema Pcs. que entrou em fuga se apega a uma ideia substitutiva. Por um lado, esta se relaciona por associação à ideia rejeitada e, por outro, escapa à repressão em virtude da distância daquela ideia. A ideia substitutiva desempenha o papel de anticatexia do sistema Cs. (Pcs.), protegendo-o contra a emergência da ideia reprimida. Nessa etapa, a tentativa de impedir a ansiedade leva a uma crescente racionalização. A ideia substitutiva é ou age como se fosse o ponto de partida para a liberação da ansiedade.

Por fim, o terceiro passo completa o processo da repressão. O ambiente associado à ideia substitutiva é catexizado com intensidade especial. Inicia-se uma nova fuga de catexia (do Pcs.) que leva a inibição do desenvolvimento da ansiedade. O sujeito se protege da ideia de excitação que vem de fora, criando novos substitutos por deslocamentos. Nesse processo se afasta cada vez mais da ideia substitutiva, por meio de evitações, renúncias e proibições.

Freud também comenta que o terceiro passo repete o trabalho do segundo numa escala mais ampla. O sistema Cs. se defende da ideia substitutiva por meio da anticatexia de seu ambiente, com se defendeu da ideia reprimida pela catexia da ideia substitutiva. Ou seja, ocorrem novas formações de substitutos por deslocamentos.

Tudo faz parecer que a ansiedade não vem do impulso instintual, mas de uma percepção, de um perigo externo, podendo o sujeito reagir por meio de evitações fóbicas. Assim, a ansiedade é reprimida por meio de pesado sacrifício de liberdade pessoal, jamais sendo uma repressão satisfatória.

O autor também afirma que, comparativamente, a repressão na histeria de conversão é mais satisfatória do que a histeria de ansiedade e a neurose obsessiva, pois no caso da primeira a catexia instintual da ideia reprimida converte-se na inervação do sintoma no plano do corpo. De outro modo, na histeria de ansiedade e na neurose obsessiva predominam a anticatexia e a ausência de descarga.

A quinta parte do texto intitula-se As características especiais do sistema Ics e versa sobre as diferenças do sistema Ics. e Pcs. (Cs.).

Para Freud “o núcleo do Ics consiste em representantes instintuais que procuram descarregar sua catexia, isto é, consiste em impulsos carregados de desejo” (idem, p. 191). Tais impulsos instintuais estão isentos de contradição mútua e são conteúdos catexizados com maior ou menor força. No sistema Ics. predomina o processo primário, mobilidade de catexia por deslocamento (uma ideia cede à outra sua catexia) e condensação (uma ideia apropria-se da catexia de outras ideias), a intemporalidade e a substituição da realidade externa pela psíquica. Os processos inconscientes estão sujeitos ao princípio de prazer, ou seja, ao atendimento das exigências do princípio prazer-desprazer.

Inversamente, as características do sistema Pcs. (Cs.) são a inibição de ideias catexizadas à descarga, ordem no tempo, estabelecimento de várias censuras e teste de realidade.

A sexta parte do texto denomina-se Comunicação entre os dois sistemas. Para o autor, o Ics. permanece vivo e estabelece relações com o Pcs., até de cooperação. Cada passo no sentido de uma etapa mais elevada de organização psíquica corresponde a uma nova censura. Além disso, “o ato de se tornar consciente depende de que a atenção do Pcs. esteja voltada para certa direção” (idem, p. 197). Atenção neste caso diz respeito à energia catexial móvel. Mas não é mero ato de percepção, é provavelmente uma hipercatexia, um avanço ulterior na organização psíquica. O inverso é verdadeiro: o caminho do Pcs. para o Ics. permanece aberto. Somente os que partem do Ics. estão sujeitos ao bloqueio pela repressão.

O conteúdo do sistema Pcs. (ou Cs.) deriva em parte da vida instintual e em parte da percepção. Para Freud “uma alteração espontânea efetuada no Ics. a partir da direção do Cs. constitui um processo difícil e lento” (idem, p. 199). De outro modo, o núcleo do Ics. é constituído por formações mentais herdadas e o que foi descartado como inútil durante o desenvolvimento da infância.

A sétima e última parte do texto intitula-se Avaliação do Inconsciente. Nesta, Freud argumenta que na neurose de transferência a catexia objetal persiste no sistema inconsciente, apesar da repressão. Enquanto que na esquizofrenia, de outro modo, refugia-se no ego. Daí a incapacidade, neste último caso, de transferência, inacessibilidade aos esforços terapêuticos, repúdio ao mundo externo, apatia, hipercatexia do próprio ego, abandono das catexias objetais.

O autor também argumenta que na psicose ocorrem com as palavras o mesmo que as imagens oníricas (processo psíquico primário).

“Passam por uma condensação e, por meio de deslocamento, transferem integralmente suas catexias de umas para as outras. O processo pode ir tão longe, que uma única palavra, se for especialmente adequada devido as suas numerosas conexões, assume a representação de todo um encadeamento de pensamento” (idem, p. 204).

Além disso, “o que dita a substituição não é a semelhança entre as coisas denotadas, mas a uniformidade das palavras empregadas para expressá-las” (idem, p. 205).

Após esta explanação Freud dá um passo fundamental rumo à finalização do texto. Ele afirma que a diferença entre uma apresentação consciente e uma inconsciente não está no registro diferente em diferentes localidades psíquicas, nem diferentes estados funcionais de catexia na mesma localidade,

“mas a apresentação consciente abrange a apresentação da coisa mais a apresentação da palavra que pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação da coisa apenas. O sistema Ics. contém as catexias da coisa dos objetos, as primeiras e verdadeiras catexias objetais; o sistema Pcs. ocorre quando essa apresentação da coisa é hipercatexizada através da ligação com as apresentações da palavra que lhe correspondem” (idem, p. 206).

Uma apresentação que não é posta em palavras, ou não seja hipercatexizada, permanece no Ics., em estado de repressão. Em outras palavras, tornar consciente é ligar-se às palavras, característica do sistema Pcs. Daí a centralidade que a linguagem ocupa na clínica freudiana e no processo de liberação da repressão.

Referência bibliográfica:

FREUD, Sigmund. O inconsciente (1915). In: FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico, Artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914–1916). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (163–222p.)

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