Resenha de “Luto e melancolia (1917 [1915])” de Freud

César Assis
6 min readSep 17, 2021

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De acordo com a nota do editor inglês das obras completas, as ideias contidas no texto Luto e Melancolia foram apresentadas para a Sociedade Psicanalítica de Viena, em 30 de dezembro de 1914. O rascunho final do artigo foi feito em maio de 1915, tendo sido publicado somente em 1917. Nele, Freud conceitua comparativamente as noções de luto e melancolia, além de prolongar suas reflexões sobre os conceitos de narcisismo, identificação e agente crítico. Digna de nota também é a reflexão contida no texto que levou à formulação posterior do conceito de superego.

Freud inicia sua análise diferenciando as noções de luto e melancolia. O primeiro está vinculado à perda de algo:

“O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante” (Freud, 2006 (1917 [1915]) p. 249).

A pessoa que se encontra nesta situação está devotada a seu luto, não sobrando energia para qualquer investimento em novos objetos do mundo externo, havendo uma notável falta de interesse.

Os mesmos acontecimentos, as mesmas influências externas, que causariam o luto em uma pessoa, em outras, diferentemente, geram melancolia. Esta é bastante semelhante ao luto, como podemos ver, diferenciando em uma questão:

“Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da autoestima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas.” (idem, p. 250).

O trabalho do luto é consumado com o passar do tempo. O teste da realidade leva à elaboração da perda do objeto: a aceitação de que o objeto não existe mais. Em um processo moroso e doloroso, a libido se retira das ligações com o objeto perdido, estando liberada para um novo investimento. Contudo, esse processo é vivido com muitas resistências. Geralmente as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal. No final do processo, o ego torna-se novamente livre e desinibido.

Apesar de a melancolia ser como o luto, ou seja, um estado que emerge da reação à perda de um objeto, outra característica particular é o fato de ela estar relacionada com a perda de algo mais ideal e inconsciente, nos termos de Freud:

“O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (como no caso, por exemplo, de uma noiva que tenha levado o fora). Ainda em outros casos nos sentimos justificados em sustentar a crença de que uma perda dessa espécie ocorreu; não podemos, porém, ver claramente o que foi perdido, sendo de todo razoável supor que também o paciente não pode conscientemente perceber o que perdeu. Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda”. (idem, p. 251)

Como já foi afirmado, no caso da melancolia há um empobrecimento na autoestima do sujeito. Geralmente o paciente apresenta o ego como desprovido de valor, incapaz de realização e moralmente desprezível. É tomado por autoacusações, envilece-se, degrada-se, quer ser expulso e punido. Não sente vergonha em se denegrir, há um desejo de comunicar o seu desvalor. Em verdade, há um descompasso entre o grau de degradação e sua real justificação. Contudo, essa autodegradação é a descrição correta de sua situação psicológica. Assim, notamos mais uma diferença entre o luto e a melancolia, nas palavras de Freud: “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego” (idem, p. 251).

Ocorre que, na melancolia, parte do ego se coloca contra a outra, julgando-a criticamente. Por assim dizer, o agente crítico toma o ego como objeto de seu sadismo. Contudo, se ouvirmos atentamente as autoacusações do paciente, identificaremos que elas não se referem realmente a ele, mas sim a outros, alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar.

“É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemos que as autorecriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente” (idem, p. 254).

Assim, a melancolia é o efeito de um processo narcísico. A relação libidinal com um objeto foi destroçada, mas a libido não buscou um outro objeto, ela retornou para o ego do sujeito.

“O resultado não foi o normal — uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo –, mas algo diferente, para cujas ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação” (idem, p. 254–255).

Na melancolia, não há renúncia da relação amorosa, pois o ego está identificado de maneira narcísica com o objeto. Esta identificação se deu em conformidade com a fase oral ou canibalista, quando o sujeito deseja incorporar o objeto devorando-o, tornando-se ele.

A perda do objeto leva o sujeito a experimentar a ambivalência de sentimentos, amor e ódio (como na neurose obsessiva). Como resultado, a culpa emerge desse conflito entre emoções. O amor não é renunciado, pois devido à identificação narcísica, ele está voltado para o ego. Por sua vez, o ódio entra em ação ferindo o objeto substituto, o próprio eu do sujeito. O agente crítico abusa do ego, degrada-o, o faz sofrer, e retira satisfação sádica desse sofrimento.

Freud explica o suicídio precisamente nesses termos. A preservação é um dos instintos básicos do ego, ou seja, teria que haver uma justificação mais razoável para compreender como a pessoa pode colocar fim a si mesmo. Para o autor, o sujeito apenas pode se matar na medida em que o impulso assassino contra outros é direcionado contra a si mesmo. Tanto na paixão intensa como no suicídio, o ego é dominado pelo objeto, este se torna mais forte que o primeiro.

Com relação ao ponto de vista topográfico, as razões do quadro de melancolia estão no sistema inconsciente. Como já foi afirmado, o paciente perdeu um objeto ideal, do qual ele não tem consciência. Além disso, a ambivalência de sentimentos experimentados, o amor e o ódio pelo objeto original, agora dirigidos contra si, é uma luta experimentada no sistema inconsciente. Assim, “vemos que o ego se degrada e se enfurece contra si mesmo, e compreendemos tão pouco quanto o paciente a que é que isso pode levar e como pode modificar-se” (idem, p. 262).

A melancolia se comporta como uma ferida aberta atraindo todas as catexias. Como se processa no luto, é somente com o tempo que pode ocorrer uma reorganização da catexia libidinal. Nas palavras de Freud:

“Do mesmo modo que o luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-o morto e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver, assim também cada luta isolada da ambivalência distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o e mesmo, por assim dizer, matando-o. É possível que o processo no Ics. chegue a um fim, quer após a fúria ter se dissipado, quer após o objeto ter sido abandoando como destituído de valor […] O ego pode derivar daí a satisfação de saber que é o melhor dos dois, que é superior ao objeto” (idem, p. 262)

Em síntese, a melancolia é um estado que emerge da combinação de determinadas condições, como foi visto, a perda de um objeto (como no luto), a ambivalência de emoções com relação a esse objeto (amor e ódio, como na neurose obsessiva) e o retorno da libido para o ego (como na identificação narcísica), o que leva a um autosadismo, cuja explicação é inconsciente.

Referência bibliográfica

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917[1915]). In: FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico, Artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914–1916). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Pg. 243–266.

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